quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

"O CAVALEIRO INEXISTENTE"


"Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, como no fundo tudo se move e nada muda na crosta rugosa do mundo, pois só existe uma extensão da mesma matéria, exatamente como a página em que escrevo, uma extensão que se contrai e se decanta em formas e consistências diversas e em vários matizes mas que ainda pode se representar espalmada numa superfície plana, inclusive em seus aglomerados pilosos, cheios de penugem ou nodosos como um casco de tartaruga, e tal pilosidade, penudez ou nodosidade às vezes parece que se mexe, ou seja, há mudanças das relações entre as várias qualidades distribuídas na dimensão da matéria uniforme ao redor, sem que nada se desloque substancialmente. Podemos dizer que o único que de fato efetua uma deslocação aqui é Agilulfo, não digo o seu cavalo, não digo sua armadura, mas aquele algo sozinho, preocupado consigo mesmo, impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura. Em volta dele, as pinhas caem do galho, os riachos correm entre os seixos, os peixes nadam nos riachos, as lagartas roem as folhas, as tartarugas agitam-se com o ventre duro no chão, mas é apenas uma ilusão de movimento, um perpétuo virar-se e revirar-se como a água das ondas. E nessa onda se vira e se revira Gurdulu, prisioneiro do tapete das coisas, espalmado também ele na mesma massa com as pinhas os peixes as lagartas as pedras as folhas, mera excrescência da crosta do mundo."
(página 88)

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poesia de pureza.